sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Evangelização: missão e desafio - 7



Nos últimos quinhentos anos, a Igreja passou por momentos importantes que deixaram marcas na sua história. Dentro desse panorama, desde Trento até o Vaticano II, que toma feições próprias na América Latina, surgem pelo menos três modelos de catequese, cada qual com bases eclesiológicas e cristológicas próprias e, por isso, com objetivos específicos, podendo ser distinguidos.

Mesmo podendo ser distinguidos, é bom lembrar que a linha divisória entre esses modelos é muito tênue. Por vezes, não dá para saber onde acaba um e começa outro, até porque eles coexistem com a maior tranqüilidade nos tempos atuais. Afinal, uma das características da pós-modernidade é a pluralidade, a diversidade, a bricolagem. Ainda que essa divisão só tenha fins pedagógicos, ela é fundamental para a compreensão da prática catequética de hoje, para uma melhor distinção dos atuais discursos que vigoram na pastoral.

É sempre complicado dar nomes para esses modelos. Como disse Guimarães Rosa, “muita coisa importante falta nome”. Nomes especificam demais, rotulam, põem dentro de categorias e padrões específicos, como se cada modelo subsistisse em compartimentos estanques. Não é assim. Mesmo correndo esse risco, essa nomeação será feita com fins didáticos.

Catequese centrada na doutrina
Uma prática catequética que tem suas bases na necessidade de doutrinar, nascida a partir de Trento, pouco a pouco se implantou no palco da Igreja, chamada também de “catequese como instrução” (CR, 10). Uma preocupação muito grande com a identidade católica, com os mandamentos, o conteúdo da fé e os sacramentos foi encontrando aconchego em alguns espaços eclesiais, especialmente depois do crescimento assustador do número de Igrejas cristãs e de adeptos que tais denominações arrebanharam.

Os católicos que sobraram na Igreja não têm mais um perfil único que os distinga, dando um rosto próprio ao catolicismo. Como já foi dito, há católicos piedosos ainda herdeiros dos catecismos tridentinos, com medo de Deus, com visão mágica dos sacramentos. Há católicos de nome, sem nenhum vínculo de maior compromisso com a fé católica, que freqüentam o culto por ocasião de algum evento importante: casamento de um parente, missa de corpo presente ou sétimo dia, primeira comunhão ou batismo dos filhos. Há católicos que freqüentam ao mesmo tempo a liturgia da Igreja Católica e outra denominação religiosa. Há católicos que pensam que não é preciso freqüentar a igreja, pois é suficiente fazer o bem e viver a caridade. Há católicos que não abrem mão deste título, mas desconhecem sequer a fé que a Igreja professa. Há católicos piedosos, com práticas religiosas freqüentes, mas com características pentecostais: lêem a Bíblia, vão à missa, conhecem a fé, fizeram uma experiência pessoal de Deus, mas têm linguagem e prática eclesial pouco semelhante às católicas. Há católicos cheios de boa vontade, militantes na prática social, preocupados com a libertação do povo, com a organização da sociedade, com a ecologia, com a mulher, com os grupos minoritários. Mas estes também nem sempre se encaixam perfeitamente no perfil católico. Por vezes ignoram as orientações da Igreja, menosprezam os sacramentos, desconhecem a fé professada, mas conhecem bem alguns textos bíblicos e alguns chavões que sustentam suas práticas pastorais. E ainda há uma pseudo-elite: intelectual, engajada, participativa, aparentemente bem formada.

Diante de tal quadro, uma necessidade parece urgir: é preciso formar o católico, ensinar-lhe a base de sua fé. Ele deve estar preparado para dar as razões de sua esperança (cf. 1Pd 3,15). Pastores de boa vontade se empenham a todo custo nesta tarefa. Cursos de batismo, cursos de noivos, cursos de crisma, preparação para a primeira comunhão, curso disso e daquilo. Para qualquer passo na vida eclesial – especialmente quando se trata dos sacramentos – é preciso fazer um curso, freqüentar a comunidade, ganhar um certificado.

E não é só isso! O discurso catequético-evangelizador tomou esse tom. Nas assembléias, nas homilias, nos encontros, nos retiros, em toda parte, fica clara uma preocupação grande com o saber, com o conhecer. Imagina-se que o aprofundamento doutrinal garanta aos batizados a passagem de católicos nominais a católicos efetivos, como se a doutrina fosse uma fórmula mágica, capaz de tirar do anonimato e inserir no serviço à Igreja. Mas, como lembra Gopegui,
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quando a consciência do esvaziamento doutrinal de uma determinada prática evangélica [...] provoca uma reação pendular e saudosista de volta ao tipo de doutrinação dos catecismos de antanho, influenciados pelo racionalismo que marcou a cultura do século XIX, não se pode deixar de surgir a suspeita hermenêutica de que estão sendo confundidos o conteúdo singular do Evangelho ou a originalidade da doutrina cristã com um simples saber de caráter racionalista .
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Busca-se na doutrina uma esperança para a fé. Esse modelo catequético está bastante em vigor. E não é só por parte de párocos e catequistas, que, preocupados com a formação dos catequizandos, procuram o manual mais denso, com mais conteúdo. Não! A preocupação vem da hierarquia como um todo, das autoridades eclesiásticas. É só observar.
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(1) GOPEGUI, Juan A. Ruiz de. Catequese e Tradição da fé. Síntese Nova Fase, São Paulo, v. 4, n. 11, p. 4, 1977.
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Em 1992, a Santa Sé lançou o “Catecismo da Igreja Católica”. Ele tem semelhanças grandiosas com o “Catecismo dos Párocos” de Trento: primeiro, o Símbolo dos Apóstolos; depois, os Sacramentos; em um terceiro momento, a Vida Ética, com ênfase nos Mandamentos; e, por fim, a Oração Cristã. Esta observação não chega a ser uma crítica em relação ao esquema adotado. Talvez o modelo de Trento tenha sido mantido, pois estes são os pilares da fé cristã, mas não deixa de ser sintomática a semelhança. Outra semelhança com o Catecismo de Trento é que ele não se destinava ao povo, mas aos bispos. Na prática, porém, acabou sendo usado em cursos populares, etc. As Igrejas Particulares e Conferências Episcopais deveriam fazer seu próprio catecismo para o povo, mas como isso não acontecia, em 2005, o dito Catecismo ganhou da parte do Vaticano uma versão mais popular em forma de perguntas e respostas. A fim de facilitar para o povo! Mas este caminho pode ficar perigoso. Seria uma simples volta ao passado, por não se saber como agir frente ao futuro incerto? Haveria, por trás dessa retomada da doutrinação, o pensamento de que conhecer os conteúdos da fé seria a solução para todos os problemas pastorais? Está claro para a Igreja que não basta conhecer os conteúdos da fé, apesar de também isto ser muito importante no processo de seguimento de Jesus Cristo?

Por fim, em julho de 2007, a CNBB lançou uma publicação parecida: um catecismo facilitado para o católico do Brasil: “Sou católico, vivo a minha fé”. Um livro que mostra o esforço dos bispos do Brasil de fazer conhecida a fé católica, abordando inclusive temas que distinguem a doutrina católica da doutrina protestante. Uma iniciativa boa, cujo resultado ainda não se pode avaliar, mas que parece não ser suficiente para enfrentar os novos desafios pastorais.

Não há dúvidas de que uma grande preocupação com a doutrina se alastrou por toda a Igreja. E não é sem razão. Os católicos perderam sua identidade de fé: já não é mais tão fácil distinguir um católico de um evangélico, de um budista, de um seguidor da New Age, de um espírita. Ficou tudo tão globalizado, tão parecido! Parafraseando Carlos Drumond de Andrade, a pergunta mais oportuna seria: “E acaso existirão os católicos?”(2). Existe de fato uma identidade católica, algo que distinga alguém que professa a fé católica das outras crenças que aí se encontram? E, se existe, o que fazer para resgatar essa identidade? Qual o discurso mais apropriado para este resgate? Alguns parecem optar pelo caminho da
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(2) Em seu poema Hino Nacional, o poeta põe a questão “E acaso existirão os brasileiros?”. Como pedra no sapato que incomoda e perturba, Drumond provoca o povo brasileiro a repensar sua identidade. Percebendo a consciência nacional adormecida, o autor quer trazer à tona o que faz o brasileiro ser brasileiro. Cf. ANDRADE, Carlos Drumond de. Reunião: 10 livros de poesia. Rio de Janeiro, 1969.
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doutrinação. A difusão da doutrina gera conhecimento dos conteúdos da fé. O católico que conhece bem a fé que professa sabe se posicionar melhor frente ao proselitismo de certas Igrejas. Mas é bom lembrar o que disse Karl Barth:
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O chamado ao discipulado sujeita a pessoa Àquele que a chama. Ela não é chamada por uma idéia sobre Cristo, ou uma cristologia, ou um sistema cristocêntrico de pensar com a suposta concepção cristã de um Deus Pai. Como estas poderiam chamar ao discipulado? Não possuem palavras nem voz. Não podem sujeitar alguém. Devemos tomar cuidados para não escondermos o Jesus que vive atrás de teorias, sabendo que aquele que pode emitir este chamado, que tem as palavras e a voz para o fazer, e acima de todos possui justiça, autoridade e poder para submeter, certamente o fará .
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Fica, então, uma pergunta: será a catequese centrada na doutrina suficiente para formar o cristão maduro na fé? Será que este modelo pode gerar autênticos discípulos de Cristo?

Todo discurso adotado faz surgir uma pergunta: que tipo de cristão ele quer formar? Certamente a resposta de quem aderiu a tal método será: “o que se quer é formar o cristão maduro”. Ninguém há de dizer que quer formar o católico para os sacramentos ou para o serviço interno da Igreja. Mas, na prática, quase sempre é este o cristão que tem resultado desta evangelização. Os manuais de catequese infantil, por exemplo, que são considerados como aqueles que contêm mais conteúdo doutrinário e, por isso, são mais recomendados neste sentido, estão sempre divididos em etapas de preparação para o sacramento: pré-eucaristia, eucaristia, pré-crisma, crisma. Sem falar na preparação para batismo e casamento e a respectiva catequese própria. Tudo isso é bom! Mas, a rigor, pode não estar preparando um autêntico seguidor de Jesus Cristo, mas sim alguém com melhor conhecimento da fé professada especialmente na área sacramental, sem garantias de que essa fé seja realmente abraçada.

O modelo catequético centrado na doutrina é apenas um dos que tem vigorado no momento. Mas ele não está só. Há outros disputando o espaço! Continuaremos falando sobre isso na próxima semana.
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BARTH, Karl. Chamado ao discipulado. São Paulo: Fonte Editorial, 2006. p. 21.
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SOLANGE MARIA DO CARMO
DOUTORANDA EM CATEQUESE E PROFESSORA DE TEOLOGIA BÍBLICA NA PUC-BH
AUTORA DA COLEÇÃO CATEQUESE PERMANENTE DA PAULUS EDITORA COM Pe ORIONE (MATERIAL QUE SERÁ ADOTADO PELA DIOCESE DE LORENA EM 2010)

MARCADOR: SOLANGE MARIA DO CARMO
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