(2ª parte)
Em tempos atuais, apesar de notarmos essas três sensações presentes nos cristãos – de exílio, de êxodo e de diáspora –, parece sábio distinguir qual delas se apresenta mais legítima diante dos desafios culturais que se colocam em nossa sociedade ocidental. Não me parece que o mundo nos ataque a ponto de ser nosso inimigo. Nossa presença no mundo é legítima, apesar de algumas investidas contra a Igreja. Nós temos direito a voz e vez como tantos outros grupos humanos. Nós reivindicamos a legitimidade de nosso pensamento frente ao pensar científico e somos reconhecidos como pensadores, com reconhecimento oficial da sociedade através do aval do MEC. Não somos um grupo de gente explorada, marginalizada, escravizada, nas catacumbas do império. Seria complexo de perseguição pensar o contrário. Apenas não regemos mais a história como no tempo da Cristandade. A Igreja sabe que está dispersa e que o cristianismo não estrutura mais a vida social do país. Em não poucos países, ela é minoria; sua voz ressoa inexpressiva e insignificante no meio do barulho do mundo. E os olhares se voltam para ela com rigor e severidade, querendo tirar-lhe o resto dos privilégios de seu tempo de glória e colocá-la em pé de igualdade com tantas outras instituições seculares, o que me parece bastante razoável até. Poderíamos afirmar, sem medo, que a fé cristã não foi sufocada pelos tsunames da história. “Os cristãos são em menor número, mas eles vivem – sem vergonha, sem desânimo e sem nostalgia de um passado mítico – sua fé cristã no mundo. Este não lhes parece menos digno do evangelho que o precedente, e pode-se viver nele cheio da esperança da ressurreição. Trata-se de juntar-se a ele, integrando-se na rede social, sem procurar adaptar outro modo de tornar visível a forma de vida que nos faz livres”[1].
Essas três imagens – o êxodo, o exílio e a diáspora – nos fazem pensar a presença da teologia na universidade. O universo de idéias que o ambiente universitário faz acontecer, e no qual estamos imersos, irrompe como uma imensidão muito maior do que nós. E conclama os cristãos a se portarem como no tempo da diáspora: homens e mulheres se encontram dispersos no campus universitário, sujeitos às mesmas regras – com direitos e deveres iguais –, envolvidos no mesmo clima de pesquisa e submetidos à mesma necessidade de dar razões de seu estatuto quanto qualquer outra ciência. Poderíamos chorar os privilégios perdidos: são carnes com alho e cebola do tempo do Egito. Vejamos alguns exemplos: Que pode significar a ínfima comodidade de ter o espaço físico das salas de aula dos seminários diante do prazer infinito de poder participar da ágora humana do saber? O que representa a fração da boa convivência fraterna que reinava entre nós, os iguais, nos estreitos corredores dos antigos institutos de filosofia e teologia quando comparada à alegria da grande convivência com tantas diferenças na imensidão do campus universitário? E o que dizer do barulho dos transeuntes, que vêm e vão às gargalhadas enquanto estudamos sisudamente nossos conteúdos? Será que a alegria e a espontaneidade dos jovens universitários não nos ajudam a recobrar que o evangelho é boa-nova e que como tal precisa ser vivido, ou corre o risco de ser ilegítimo? Vamos admitir que aula com tanto barulho perturba professor e alunos. Mas a riqueza da presença está para além dos trâmites do desconforto causado. E o que dizer do constrangimento de estarmos sujeitos a tanta burocracia da CAPES, como se as da instituição Igreja não fossem suficientes? E mais, problemas de estacionamentos dos carros de alunos e professores, caminhar a pé sob a chuva e o sol do estacionamento até as salas de aula, etc. Tínhamos antes alguns benefícios quando estávamos enclausurados em nossos seminários, e nem sequer tínhamos notado! Eles só nos fazem falta quando os perdemos. Mas é preciso abrir os olhos: eles dão uma sensação de bem-estar, mas têm o sabor amargo da imolação de nossa liberdade. Consciente de que o sabor da escravidão é mais forte ao paladar humano que as delícias do alho e da cebola em nossa boca, o povo hebreu comeu ervas amargas ao sair do Egito. A estabilidade e a sobrevivência garantidas pareciam ganho, mas na verdade eram traição aos ideais mais nobres de libertação. É o alto preço da liberdade, da alegria de estar inserido no meio do mundo, de poder dialogar com ele, partilhar experiências, dar e receber contribuições humanas preciosas para o aperfeiçoamento da história.
Nós poderíamos nos deixar assombrar pelos fantasmas da saudade, quando a teologia era apenas um curso para preparar para o ministério ordenado, num espaço particular das diversas dioceses. Mas, se a forma herdada – monolítica e homogênia, de seminaristas, de pessoas do sexo masculino, da mesma religião, todas no mesmo curso – está efetivamente em vias de extinção em quase todos os centros do Brasil e do mundo, “outra surge testemunhando o inaudito e a imprevisibilidade da fé cristã”[2], sua incrível capacidade de adaptação e sua sujeição ao mistério do Espírito. Dentre essa forma, distinguimos a riqueza da presença de leigos e leigas fazendo teologia, de jovens de outros cursos sendo atraídos para conhecer a fé cristã, de irmãos de outras denominações que dão um novo rosto à teologia da Igreja impondo-nos um saudável pensar ecumênico, da aparição de um novo perfil de teólogos que não eram reconhecidos e que pedem reconhecimento, para além das formas tradicionais de fazer teologia. Tudo isso dá à Igreja Católica um rosto menos clerical, além de um perfil mais ecumênico e dialogal tão sonhado pelo Vaticano II.
Sou do time dos que se alegram com a nova forma de fazer teologia que se instaura na caminhada da Igreja do Brasil. Eu mesma fui excluída do processo teológico num tempo em que a teologia era exclusividade de ministros ordenados da Igreja: todos varões, celibatários, seminaristas católicos, abastados – ainda que de origem pobre – pois tinham sua manutenção garantida pela Igreja. Foi preciso forçar as fechaduras para que entrassem nos átrios sagrados da teologia católica os leigos, as mulheres, as pessoas casadas, os não-católicos, os trabalhadores que pagam suas contas... Como se os leigos não pensassem teologicamente sua consagração pelo batismo e sua relação com Deus; como se a mulher fosse menos capaz de teologia por lhe faltar testosterona; como se aquele que vive uma vida sexual normal, sem a privação do prazer legítimo, fosse menos puro para conhecer as razões de sua fé; como se os que não estão dentro dos limites da Igreja Católica não tivessem nada a lhe dizer sobre Deus, como se os pobres, que tem que estudar e trabalhar, não fossem dignos da teologia – a eterna briga entre Platão e os sofistas! Sobre o teor de testosterona, é bom lembrar que o teor de estrogênio compensa isso facilmente, com vantagens múltiplas já comprovadas pela ciência. Mas engana-se aquele que pensa que proponho uma teologia mais estrogênica e com menos testosterona, mais laical e menos clerical, mais ecumênica e menos católica. Não é isso! Até porque a saída não se encontra na oposição, mas na acolhida da diferença e na complementaridade. Nos tempos de diáspora, pois, em que vivemos, proponho: uma teologia com feição mais amplamente humana e com um perfil menos androcêntrico; uma teologia mais eclesial e menos clerical, uma teologia mais ecumênica e, por isso mesmo, totalmente católica.
Bem-vindos todos ao tempo da Diáspora, que nos desafia à solidariedade, à acolhida do novo e ao testemunho de Jesus Cristo no meio das universidades.
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