sábado, 17 de outubro de 2009

Um encontro transformador





Se há algo que salta aos olhos do leitor dos Atos dos Apóstolos é a conversão de Paulo. A repetição do relato, que aparece três vezes (At 9,1-22; 22,1-21; 26,9-18) e a extensão do texto falam muito. Esses detalhes não são de somenos importância. A estrutura do texto aponta certamente para a estrutura teológica e, num tempo em que escrever era arte cara e trabalhosa, a insistência de Lucas acerca da conversão do Fariseu de Tarso só pode indicar algo de grande.


Já muito se falou que Paulo é o apóstolo das nações. Se lemos as Cartas Paulinas, notamos sua peleja para ser reconhecido como apóstolo, como os demais que conheceram Jesus. É só abrir a Segunda Carta aos Coríntios e aparece um rol de argumentos convincentes que fazem crer que, ainda que seja o último dos apóstolos, ele também conheceu o Senhor no caminho de Damasco. Pulula no texto uma argumentação ardente, calorosa, cheia de vida... Emana das palavras paulinas um ardor apaixonado pelo Crucificado. De onde vem tanta paixão? De onde vem tanto entusiasmo e convicção? Qual a origem de tanta força e garra? Por que, mesmo em meio a desprezos e privações, o antigo e zeloso Fariseu de Tarso não desanima de seguir Aquele que antes ele perseguia? De onde vem a espiritualidade evangelizadora paulina? 


Para o autor dos Atos dos Apóstolos, o segredo se encontra no episódio narrado no capítulo 9: no confronto com o Ressuscitado se fundamenta a força de Paulo e sua missão. A espiritualidade paulina é a espiritualidade do encontro. Na experiência pessoal com o Ressuscitado, Paulo tem seus alicerces judaicos balançados e encontra no Messias de Nazaré outra fundamentação –maior e mais sólida – para prosseguir na jornada da fé.


Mas a experiência pessoal com Deus é base suficiente para alicerçar a vida de fé? 


Essa pergunta pode ser respondida a partir do relato da conversão de Paulo presente em At 9,1-22. Lucas insiste em registrar que a experiência feita por Saulo de Tarso não surge de iniciativa própria (como foi sua iniciativa de pedir ao Sinédrio cartas que lhe davam o direito de caçar e prender os cristãos, At 9,1). Saulo não é o sujeito que provoca aquele encontro: o sujeito da ação é o próprio Deus, que cerca Paulo com sua luz e lhe dirige sua voz, chamando-o pelo nome. Mas Saulo, ao mesmo tempo, também é sujeito: Deus se comunica a Saulo como a alguém: fala a uma pessoa que tem história, passado, desejos; alguém capaz de responder pessoalmente a um apelo. 


Lucas deixa claro: não é Saulo que vê o Senhor, mas o Senhor que aparece para ele. E isso faz toda a diferença. O que aconteceu àquele que respirava ameaças de morte contra os discípulos do Senhor (At 9,1) não foi uma experiência psicológica, fruto de auto-sugestão. Saulo não teve uma experiência subjetiva, afetiva, interior somente. Também! Certamente, tal evento não poderia deixar de trazer marcas de subjetividade, de sua vida mais íntima e pessoal. Saulo entra em diálogo com o Senhor: cria relações com ele (cf. At 9,4-7). Mas essa experiência não é desprovida de objetividade, como se o encontro com o Ressuscitado fosse algo emocional ou psicológico. A experiência de Saulo se assenta em Deus. Não é fruto do desejo dele. Deus, que é fonte de todo bem e autor de toda obra, toma a iniciativa. É Deus mesmo o fundamento da experiência. O Deus que chamou os patriarcas e os profetas apareceu a Saulo, como numa visão, e lhe deu a missão de pregar aos gentios. Tal experiência de encontro revela-se tão densa de potencialidades e impregna naquele que a vive tantos traumas, que não há força capaz de apagar suas marcas. A partir do caminho de Damasco, Saulo de Tarso nunca mais será o mesmo. Sua vida recebeu um selo, seu coração foi tatuado com a marca do Ressuscitado, sua mente foi afetada por Aquele que o amou primeiro... E Saulo sabe disso. Desde então não pode e não quer mais viver para outra coisa a não ser anunciar Aquele que ele conheceu a partir dessa experiência impactante.


É difícil falar sobre essa experiência do encontro. Lucas não se preocupa em dizer como ela se deu. Lucas é em primeiro lugar teólogo e não historiador, apesar de se valer de muitos dados históricos e fazer história a seu modo. Apenas quer garantir que foi algo forte, transformador, como forte e transformador é Aquele que ama e chama Saulo a segui-lo. Surge daí a certeza de que evangelizar – anunciar Aquele que o chamou – é a sua vida: “ai de mim, se eu não evangelizar!” dirá aquele que doravante se chamará Paulo, o apóstolo (1Cor 9,16). Para Paulo, evangelizar não é honra, e ser apóstolo não lhe dá glórias. Sua evangelização apenas revela que não se pode guardar para si uma experiência de tal grandiosidade: o Crucificado está vivo e sua presença transformadora deve ser acolhida por todos. O que Paulo experimenta não cabe mais dentro dele: reclama espaços, quer sair e se expandir. 


A experiência com Deus feita por Paulo no caminho de Damasco torna-se sua fonte de força e determinação. Quando acusado de charlatão, Paulo se defende: “eu também vi o Senhor!” (cf. 1Cor 15,5-8). E isto lhe basta! Ver o Senhor fez toda a diferença na vida de Paulo. Ele não seguia um desconhecido, nem alguém de quem ouviu falar, nem uma doutrina envolvente, uma argumentação teológica convincente. Seguia Aquele que ele conheceu no caminho de Damasco: o Crucificado-ressuscitado. E isto lhe dava forças! Sempre! Em qualquer situação. Foi esse encontro que fez dele o apóstolo dos gentios, o grande evangelizador das nações. A espiritualidade paulina pode ser dita, sem dúvida, como a experiência do encontro, um encontro pessoal com Deus.


SOLANGE MARIA DO CARMO
Doutoranda em Catequese e professora de teologia bíblica na PUC-BH
Autora da coleção Catequese Permanente da Paulus Editora com Pe. Orione (Material que será adotado pela Diocese de Lorena em 2010

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