sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A Bíblia: métodos de leitura 1



De vez em quando alguém aparece perguntando sobre os métodos de leitura da Bíblia e sobre qual deles é mais apropriado para se lançar luzes sobre os textos bíblicos.

Bom, essa questão é intrigante: lançar luzes sobre os caminhos da bíblia. Certamente, ao longo da história da exegese cristã, muita coisa foi feita. Muitas luzes foram projetadas sobre o texto, muitos métodos surgiram e o texto ganhou mais transparência, mais visibilidade pelo esforço exegético de uma porção de estudiosos que se empenharam em decifrá-lo.

Em linhas gerais, nós poderíamos classificar os métodos que tiveram força e status em momentos importantes nessa caminhada de investigação em três grupos: métodos que priorizam o autor, o leitor ou o texto. Vejamos um pouco mais sobre cada um desses caminhos metodológicos.

1º) Métodos que priorizam o autor do texto

Numa primeira abordagem, o interesse de pesquisa dos exegetas foi o autor do texto: sua intenção, o que ele queria dizer com seu escrito no contexto onde ele se encontrava. Essa pesquisa muito contribuiu para a compreensão das Sagradas Escrituras. São os chamados métodos histórico-críticos, tão conhecidos dos teólogos, especialmente dos exegetas – aqueles que se debruçam sobre o texto bíblico para destrinchá-lo e melhor explicá-lo. Quem já fez teologia pelo menos já ouviu falar desses métodos. Vamos lembrá-los:

a) Crítica textual: o objetivo dessa pesquisa é reconstituir o texto no estado original do momento em que ele foi publicado. Nós não temos os originais da bíblia. Temos diversos manuscritos (pergaminhos e papiros), mas que são cópias de cópias de cópias... Na hora de copiar o texto, o copista fez modificações. Ele pode ter modificado o texto intencionalmente, por exemplo, para torná-lo mais claro. Ou pode ter modificado sem querer, por exemplo, por descuido, pois já estava cansado de tanto copiar texto à luz de velas e aí saltou uma frase, ou colocou sem querer no lugar uma outra coisa que estava na sua cabeça. É bom lembrar que tudo era feito manualmente, num trabalho minucioso e delicado, sem as técnicas modernas, sem a ajuda da imprensa. Cada texto era copiado artesanalmente, como se pinta um quadro ou se faz um trabalhoso bordado. Num trabalho artesanal, podemos fazer a mesma obra, mas ela nunca sai igualzinha. Então, os estudiosos ficam comparando os manuscritos que nos sobraram. É como se pegassem uma lupa ou um microscópio para melhor ver o que está desenhado na obra. Aí aparecem as diferenças. E além de compararem manuscritos bíblicos entre si, comparam também os manuscritos com outros textos antigos em que as citações bíblicas aparecem, por exemplo, num manual de liturgia, num escrito de algum antigo Pai da Igreja (os Santos Padres), etc.

A crítica textual não está interessada no sentido do texto, na mensagem que está veiculada naquele registro. Ela apenas procura saber até que ponto o texto bíblico que temos em mãos é mesmo o texto que foi escrito lá no começo. Então, a pergunta que norteia essa pesquisa é: “O texto que temos hoje em mãos é mesmo o que o autor escreveu originalmente?” Ou ainda, “Posso mesmo confiar nesse texto que hoje estou lendo?”. Note que o acento está sobre o autor, sobre o que ele escreveu. Recuperar isso não é tarefa fácil. E há regras para fazer essa pesquisa. São regras rigorosas, baseadas nas ciências modernas.

b) Crítica histórica: o objetivo dessa pesquisa é, tanto quanto possível, reconstruir os fatos narrados com a máxima objetividade histórica. Ou seja, a tentativa é recuperar a historicidade do fato narrado pelo autor, até porque se pensou que a Bíblia fosse um livro de história, um livro de relatos de fatos acontecidos na vida do povo de Israel durante sua vida. Essa pesquisa já foi muito importante. Agora, nem tanto mais. A Igreja compreendeu que a bíblia apresenta um relato teológico dos fatos e não um relato histórico. E essa verdade teológica que a bíblia narra vem na embalagem dos diversos gêneros e formas literários. Essa descoberta mudou bastante a abordagem bíblica, o jeito de lidar com os textos.

A pergunta principal dessa pesquisa é a seguinte: “Quando o autor relata um evento, podemos acreditar que de fato isso aconteceu? Essas palavras foram mesmo ditas por Jesus e por outros personagens bíblicos?”. Para responder a essa interrogação, o pesquisador confere os relatos bíblicos com os testemunhos arqueológicos ou com documentos da época. Ele procura ver se há registros na história que confirmem aquela narrativa. Além disso, ele confere os textos da bíblia, comparando-os para ver se são coesos ou se entram em contradição. Note que o acento continua sobre o autor: o que ele escreveu é verdade ou não? O que ele escreveu aconteceu? Recuperar isso também não é nada fácil. Há regras, critérios estabelecidos para fazer essa pesquisa.

c) Crítica literária: o objetivo dessa pesquisa é descobrir o que o autor quis dizer quando escreveu o texto. Para isso, leva-se em consideração as circunstâncias em que o texto foi escrito e o tipo de literatura que o povo produzia naquele tempo. Esse estudo foi muito importante para se desvendar certos enigmas de alguns textos bíblicos, por exemplo, quem é o autor do texto, se é um autor só ou se o texto foi composto a várias mãos, etc. Foi graças a essa pesquisa que a gente conseguiu penetrar mais no Pentateuco (os cinco primeiros livros da bíblia), que a gente descobriu que a famosa Carta de Paulo aos Hebreus não foi escrita por Paulo, assim como muitas outras a ele atribuídas. Foi aí que a gente descobriu a chamada pseudo-epigrafia: a atribuição de um escrito a uma outra pessoa, que pode ser para homenagear alguém, para dar mais credibilidade ao texto ou até para remetê-lo a uma origem mais antiga e mais confiável.

A pergunta que norteia esse trabalho é a seguinte: “Por quem, onde, como, quando, para quem, por que esse texto foi escrito?”. Ou ainda: “O que o autor quis dizer quando relatou essa história nessa dada época?” Veja que de novo a pergunta gira em torno do autor: quem escreveu, como escreveu, etc. Para fazer esse trabalho, o estudioso da bíblia busca fontes arqueológicas, literárias, arquivos e registros da época. Ele vasculha a própria bíblia pra ver os sinais que estão nela presentes. Por exemplo, ele estuda o estilo do texto, o seu vocabulário e o pensamento ali registrado, comparando-o com outros textos da época. Um trabalho também muito árduo e penoso, que exige muita dedicação e critérios muito sérios. Para isso, o estudioso conta também com a ajuda de diversas ciências modernas.

d) Estudo da Tradição: o objetivo desse estudo é saber como se formou a memória que deu origem ao texto. Todo texto bíblico, antes de ser escrito, foi vivido, transmitido, interpretado... Então, é importante saber qual era o interesse das pessoas ao conservar essas histórias, o que elas queriam transmitir, se havia grupos que pensavam diferente, etc. Essa é, então, uma preocupação com a transmissão literária do texto. Esse tipo de investigação ajuda a mergulhar melhor no texto, porque se passa a conhecer a tradição na qual ele nasceu, seu contexto, a realidade de fé e de vida que o cercava. Descobrimos que um texto vem de um lugar e outro vem de outra região; que um grupo tinha um tipo de tradição teológica e outro grupo tinha uma teologia um pouco diferente. É o caso das diversas tradições presentes, especialmente, no Pentateuco: Tadição Javista, Tradição Eloísta, Tradição Deuteronomista, Tradição Sacerdotal.

A pergunta que norteia a pesquisa é: “Que tradição conservou esse texto? Como esse grupo vivia sua fé? Que teologia esse grupo defendia? Qual imagem de Deus que está por trás desse texto?”. Veja que tudo ainda gira em torno do autor:  pensa-se na tradição à qual ele pertencia e que ele faz questão de conservar. Para saber isso, o pesquisador estuda muito: compara textos, pesquisa as teologias antigas em outros registros, procura conhecer os povos vizinhos que se relacionavam com o povo de Israel, seu jeito de crer, suas religiões, etc. Uma tarefa nada fácil e para a qual a pessoa deve ser muito bem preparada.

e) Estudo dos gêneros ou das formas: essa investigação tem como objetivo saber o gênero literário a que pertencem os livros da bíblia. Há diversos gêneros literários na bíblia: um texto foi escrito em forma de leis, outro de poesia, outro de história, outro de carta, outro de apocalipse e ainda de profecia, etc. E dentro dos livros, há diversas formas literárias diferentes. Há, por exemplo, dentro de um livro profético as chamadas invectivas, oráculos, relatos, cartas, gestos proféticos, etc. Se a gente sabe disso, lê o texto com mais critério. Ninguém lê uma receita de bolo, como se lê um conto de fadas. Nem lê uma carta, como se lesse uma constituição do país. E ninguém lê uma poesia, como se fosse uma bula de remédio. São gêneros e formas literárias diferentes. Quando a gente lê uma poesia, já sabe que é poesia. E poesia tem regras próprias, bem diferentes do código de trânsito, por exemplo. 

A pergunta que norteia essa pesquisa é clara: “Que gênero literário é esse que o autor escolheu para nos deixar essa mensagem? Que forma literária é essa que ele utilizou para fazer teologia e nos relatar sua experiência de Deus?”. Veja que a preocupação ainda é o autor: sua forma de escrever, seu artifício literário, suas escolhas literárias. O resultado dessa pesquisa orienta a leitura do texto: mostra se ele deve ser lido como um fato acontecido ou como um relato cheio de nuances próprias, se deve ser tomado como um relato biográfico ou como um relato catequético. Para fazer essa investigação, o pesquisador também estuda muito. Ele deve conhecer bem as línguas bíblicas, comparar textos da bíblia com outros livros da época, saber da cultura e da literatura do povo da Bíblia, das particulares da linguagem do povo e do seu jeito de escrever. O investigador tem muito trabalho pela frente, mas conta também com o auxílio das ciências que envolvem principalmente a lingüística e a literatura.

f) Estudo da redação: o objetivo dessa pesquisa é fazer relação entre a tradição que deu origem ao texto e a redação final do texto; ou seja, entre a forma como o relato foi transmitido e a forma que ele ganhou quando se tornou texto, pois os textos foram escritos bem depois de os relatos e as tradições terem surgido. Só para exemplificar: os Evangelhos foram escritos de 40 a 60 anos depois da morte de Jesus; a história das origens – no Gênesis – foram escritas no tempo do Exílio; a história de Rute que relata sobre o tempo dos juízes (mais ou menos 1100 aC) foi escrita em torno do ano 440 aC. Essas elaborações teológicas surgiam e eram conservadas oralmente. Só depois eram cristalizadas na forma de escrita.

A pergunta que norteia a pesquisa é: “Que relação tem esse texto que o autor escreveu com a história que ele viveu e recebeu na sua comunidade? Será igualzinha: ou ele reelaborou a tradição recebida, colocando-a numa nova forma?”. Veja que de novo o autor é o centro. O que interessa é o que ele fez. Para se emaranhar nessa pesquisa, o estudioso da bíblia tem um trabalhão também. Ele deve ser possuidor de muitos conhecimentos que nós não possuímos.

Ainda bem que tem muita gente pesquisando tudo isso e ajudando a gente a entender melhor a Bíblia. São os exegetas – estudiosos que geralmente são conhecedores das línguas bíblicas, da geografia e da história da época, da organização social do povo daquele tempo, da literatura de Canaã e dos povos vizinhos, de arqueologia e de tantas outras ciências – e que se põem a dissecar o texto, como se disseca um cadáver. A teologia usa os métodos e os recursos da ciência moderna para fazer a investigação bíblica. E o resultado é um texto todo dissecado, conhecido nas suas entranhas, desmitificado, quase sem mistérios e estranhezas. Um trabalho importante e de grande valor, pois a exegese – o que fazem esses pesquisadores – dá elementos para que o texto bíblico não seja entendido na sua literalidade, evitando o fundamentalismo e tantas outras abordagens equivocadas do texto.

Numa comparação bem simples, poderíamos dizer que o exegeta faz com o texto o que uma pessoa poderia fazer com um bom bife no prato: corta-o da maneira mais correta possível, com os melhores instrumentos, segundo as regras da etiqueta, para que seu paladar não seja alterado. E depois ainda explica como fez, o que fez, por que fez, e ensina outros a fazerem o mesmo. E critica quem fez diferente: argumenta, prova, discute e debate. Cria teorias e hipóteses. Tudo muito bom e útil. Mas, nem sempre depois de cortar o bife, esse precioso prato é degustado com prazer. O bife torna-se objeto de estudo e não um alimento saboroso que deve ser comido com calma na companhia de bons amigos. Todo o esforço do exegeta, mais que válido e precioso, nem sempre é aproveitado no final. E pior, nem todo mundo tem as técnicas, os recursos, as ferramentas e os conhecimentos necessários para fazer trabalho tão minucioso. Isso é coisa para especialistas, doutores, quase sempre religiosos e padres que dedicam sua vida a esse árduo trabalho e que assumem essa tarefa como um ministério, um dom colocado a serviço das ciências bíblicas para bem da Igreja.

Não podendo nós, pobres mortais, dar conta de tudo isso, agradecemos quem já destrinchou os textos para nós e vamos às fontes que eles nos deixaram. Há boas traduções da bíblia que levam em conta essas pesquisas e nos apresentam suas considerações em formas de notas de rodapé e na própria tradução que nos oferecem. A Bíblia de Jerusalém e a TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia) são bons exemplos desse esforço. Além delas, a bíblia da CNBB que, apesar de carecer de uma séria revisão, traz ainda outras vantagens: notas ricas e confiáveis, ótimas introduções dos livros bíblicos e uma linguagem popular e facilitada, que não adultera o texto, nem veicula ideologias. 

Para quem não pode se tornar exegeta, mas tem prazer na leitura bíblica e quer se alimentar da Palavra de Deus registrada na Escritura, essas traduções são bem recomendadas. Voltando à nossa comparação, já encontramos o bife bem partidinho e todo ajeitado, no jeito de ser degustado. Que bom que temos exegetas talentosos para nos ajudarem nessa caminhada. Agora, é só saborear esse prato delicioso.

Na próxima semana, falaremos sobre os métodos que priorizam o leitor. Até lá!


SOLANGE MARIA DO CARMO

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