sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A Bíblia: métodos de leitura 2



Continuemos nosso percurso, na incansável reflexão sobre os métodos de leitura da Bíblia. Já conversamos um pouco sobre os métodos histórico-críticos, que giram em torno do autor e de seu tempo. Reflitamos agora sobre os métodos que priorizam o leitor.

2º) Métodos que priorizam o leitor do texto


Num segundo momento, o acento da leitura bíblica foi deslocado do autor do texto para ser colocado sobre o leitor. O mesmo texto já tão conhecido e pesquisado passa a ser visto por outra ótica. Acontece que, ao trocar os óculos de leitura, conseguimos ver de outra forma o que está sob nossos olhos. A novidade se encontra na forma de ler, ou melhor, naquele que lê: o leitor. Desse novo ponto de partida, surgem diversas leituras. Vejamos duas possibilidades mais freqüentes em nosso meio.

a)   Leitura libertadora: também chamada de leitura a partir dos pobres. Essa leitura da bíblia parte de uma situação específica da vida: a pobreza e a situação de exclusão em que vivem tantos irmãos e irmãs, especialmente na América Latina. Uma sensibilidade para as questões sociais e uma percepção afinada da justiça se apresentam como marcas desse leitor.

Então, vamos entender como essa leitura ganhou corpo. Tudo começou a fazer sentido com o Vaticano II. Cristãos da América Latina há muito buscavam mudanças sociais significativas, tão cansados estavam de ver o sistema opressor em que viviam – e vivem – milhões de pessoas. As reflexões conciliares ganharam feição própria na pobreza dos países do Terceiro Mundo e a bíblia foi relida a partir do rosto do povo sofrido, sinal visível do Cristo crucificado. Textos tão conhecidos e tão populares ganharam nova cor, novo brilho, novo sentido. A problemática da fé passou a ser vista sob uma ótica inovadora: o processo de libertação dos oprimidos. Brotaram desta experiência uma nova teologia e sua reflexão, e não o contrário. Uma práxis libertadora norteou a hermenêutica bíblica.

Baseada na espiritualidade do êxodo de Israel – libertado do regime opressor do Egito –, a leitura libertadora ganhou adeptos, pessoas de peso, nomes importantes, tendo como expressão teórica dessa óptica a Teologia da Libertação. Mas os passos mais marcantes para firmar essa tendência à leitura libertadora foram dados pelas Conferências Episcopais latino-americanas, que assumiram a tarefa concreta de traduzir as grandes inspirações do Vaticano II para a realidade do povo sofredor deste continente.

Em 1968, ainda sentia-se o frescor do perfume do Concílio que desabrochara há pouco, quando aconteceu a Conferência de Medellín, com a finalidade de levar a Igreja latino-americana a uma leitura situada do Vaticano II. Dela resultou um documento, no qual os bispos afirmaram clara e corajosamente a necessidade de uma nova teologia, frente a uma sociedade profundamente marcada pela injustiça e pela opressão. E, se é necessária uma nova teologia, faz-se mister um novo jeito de ler a Bíblia, fonte principal da teologia. Toma forma, então, uma leitura a partir dos pobres.

E não ficou por aí. Em 1979, Puebla falou sobre a evangélica opção pelos pobres, realçando, com cores fortes, o estranho quadro social construído com ricos e pobres. Tanta pobreza e tanto sofrimento não podiam – e não podem – ser ignorados pela Igreja na América Latina. Ganhou ainda mais força a leitura libertadora, com a entrada no cenário de novos biblistas, exegetas e teólogos, também bispos e padres que despertavam cada vez mais para a estranha e excludente situação social de nossa gente.

Especialmente essas duas Conferências Episcopais Latino-americanas muito contribuíram para a leitura libertadora. O evento do êxodo de Israel foi redescoberto e retraduzido, trazendo possibilidades de leituras antes impensadas. Os profetas do direito e da justiça, atuantes especialmente no século VIII antes de Cristo, foram retomados e o clamor profético da Igreja ecoou por todo canto na América Latina, tendo as Escrituras como sua fonte inspiradora. Mas esse sopro renovador não ficou só nas margens estreitas da América dos Pobres. Encontrou ressonância na África, na Ásia, na população negra dos Estados Unidos, etc.

 Poderíamos dizer então que passa a buscar na bíblia um alento para sua vida e a força necessária para superar as situações de opressão. Em vez de se conformar com a leitura já conhecida, nossa gente procura fazer uma leitura que nasce de sua situação concreta. A realidade presente se torna o centro articulador da leitura; a concreta situação de pobreza e opressão do leitor tira-lhe o véu e ele vê nas Escrituras sua própria realidade, como uma imagem no espelho. A partir dessa experiência, a Escritura se transforma em fonte dinamizadora de libertação.

Então, o raciocínio é mais ou menos o seguinte:

·      Deus está presente na história; ele não ignora a história humana, ao contrário faz-se história em Jesus Cristo. E ele não tolera a injustiça e abomina a opressão.

·      Se é assim, não faz sentido a leitura bíblica ser neutra: ela deve ser encarnada como o Deus encarnado. O leitor deve tomar partido do pobre, como Deus mesmo faz. Deve repudiar toda injustiça e buscar na Escritura as bases para esse repúdio.

·      A partir daí, o melhor lugar para se ler essa Escritura torna-se a comunidade, pois a libertação é processo coletivo e não individual. Os pobres são entendidos como os destinatários primeiros do texto, pois a bíblia é palavra de libertação para eles. Eles são entendidos como aqueles que são capazes de encontrar o sentido mais genuíno da Escritura.

Essa leitura trouxe contribuições muito valiosas para a Igreja: o sentido profundo da presença de Deus na história, o reconhecimento da importância da dimensão comunitária da fé, a urgente necessidade de uma práxis libertadora enraizada na justiça social, a retomada da Escritura como pão cotidiano que sustenta o caminheiro na busca de seus sonhos, a possibilidade de revisitar a Escritura a partir de um lugar específico: o povo sofredor.

Mas ela, apesar de suas contribuições, colocou-nos diante de alguns riscos também. Ao se priorizar demais o leitor, corre-se o risco de se esquecer do texto, de se esquecer de seus códigos, de suas particularidades, etc. E pode-se ler no texto o que se que ler. Vejamos! Os grandes exegetas e biblistas que deram voz a esse tipo de leitura certamente eram pessoas muito avisadas e conhecedoras da Escritura. Mas popularizou-se por aí uma leitura bastante extravagante: a partir do binômio opressor-oprimido que norteia esse tipo de leitura, todo texto bíblico teria que falar de libertação social, de exclusão, de pobreza, etc. Mas nem todo texto da Escritura está preocupado com isso. Nem todo texto da Bíblia quer falar algo sobre a estranha e injusta situação de pobreza. Há outros problemas presentes na bíblia, muito além do que esse binômio dá conta. Se a gente forçar a barra e colocar tudo dentro desse esquema, até Jesus será opressor em algumas situações: quando ele expulsa os vendilhões do templo, quando ele responde com aspereza ao pedido da sírio-fenícia que intercede em favor de sua filha, quando ele manda pagar imposto a César, etc. Ora, esse esquema tem limites e, se por um lado, ele deixa o leitor oprimido falar por meio da Escritura; por outro, ele força a fazer uma leitura ideológica, dando, às vezes, um resultado bem equivocado do sentido original do texto.

É preciso ser cuidadoso na hora de ler a bíblia. O leitor é da máxima importância: sempre! Mas é preciso deixar o texto falar. Nem sempre a situação concreta do leitor é suficiente para definir a leitura bíblica.

b)   Leitura feminista: também chamada de leitura de gênero. A hermenêutica feminista, como a leitura libertadora, não é um outro método de estudo. É um novo jeito de abordagem da Escritura. E o que nos interessa nessa reflexão não são tanto os métodos, mas o modo de aproximação da Escritura. O jeito de ler a Bíblia: a luz que pode ser lançada sobre ela a partir de caminhos, métodos, escolhas diferentes.

Esse tipo de leitura nasceu no final do século XIX, nos Estados Unidos, no contexto sócio-cultural da luta pelos direitos da mulher. Essa hermenêutica trouxe novidades, ventilou possibilidades impensadas... Viu a bíblia por uma ótica feminina, redescobrindo o papel da mulher nas comunidades de fé, tanto do Antigo quanto do Novo testamento, mas especialmente no seguimento de Jesus. Com o olhar delicado da mulher, a Bíblia foi revistada e Deus foi compreendido na sua ternura, no seu amor materno.

A leitura feminista acrescentou dois critérios na investigação bíblica, o que ajudou a encontrar um resultado bem inovador no final da leitura. O primeiro é o critério feminista, que diz respeito à suspeita que deve ser levantada quando é feita uma aproximação do texto. Ora, o texto sagrado foi escrito por homens e para homens. Assim, para se entranhar na verdade que o texto propõe, não se deve confiar demasiadamente nos textos. Deve-se pesquisar e ir bem além dele, na tentativa de encontrar indícios que revelem outra coisa. Assim, uma pequena frase, um simples nome, uma alusão apenas, uma palavra no feminino... tudo pode ser muito importante. O segundo critério é sociológico. Procura-se investigar sobre as sociedades do tempo em que o texto foi escrito e publicado, para melhor entender o papel da mulher nessa organização.

A partir desses novos elementos, tenta-se estabelecer uma linha comparativa entre a concepção da mulher na sociedade do tempo da Bíblia e a concepção da mulher nas comunidades de fé, especialmente nas comunidades cristãs do século I. Traça-se um perfil das comunidades e vê-se a igualdade homem-mulher nos escritos dos Evangelhos e nas cartas de Paulo. O texto basilar desta leitura é Gl 3,28: “Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus”. Daí, volta-se no passado, vasculha-se a bíblia e descobre nos relatos o papel importante das mulheres nas Igrejas das origens. Mesmo nos textos do Antigo Testamento, tenta-se garimpar algum fragmento da presença feminina, tentando salvar a participação da mulher na história sagrada.

Nós não temos dúvidas de que essa leitura trouxe contribuições importantes para a Teologia Cristã. A primeira delas foi que esse tipo de leitura trouxe questões novas, esquecidas, que os homens não se punham. A teologia cristã, exceto algumas raras contribuições femininas, manteve-se ao longo da Igreja como monopólio masculino. Os homens mantinham hegemonia do pensar, especialmente na Igreja Católica. A entrada da sensibilidade feminina no panorama da hermenêutica corrigiu interpretações teológicas equivocadas e revelou a face materna de Deus.

Mas o problema dessa leitura é que, muitas vezes, despreza-se o texto em prol de uma construção hipotética. Ou ainda, atém-se a pequenos resíduos do feminino que nele se encontram e despreza-se o grande relato. Não é incomum, por exemplo, encontrar adeptos dessa leitura que, ao estudar o Pentateuco, desprezam a Torá e toda sua riqueza teológica para se debruçaram sobre algumas presenças femininas que aparecem nos relatos: Séfora, Mara, Tamar, Dina, etc. Outros, ao ler os livros históricos, ignoram toda a teologia deuteronomista para se dedicarem a saber quem foi Ana, Jezabel, Débora e outras. Outros acusam a bíblia de machista, como se naquele tempo já existissem os critérios que possuímos hoje para perceber a dignidade da mulher e sua situação de opressão na sociedade.

Estamos certos de que a leitura feminista muito contribui para abrir os olhos da Igreja, um ambiente totalmente generificado, onde a mulher ocupa papel de somenos importante. Nas questões de poder da Igreja, então, nem discutimos isso! O perigo, porém, é que a visão feminista queira ocupar o lugar da visão machista. Seria apenas inverter os papéis. Em vez de leitura feminista, falamos de leitura feminina. Toda mulher, consciente de sua feminilidade, só conseguirá ler a bíblia como mulher, com a sensibilidade feminina, com a astúcia feminina, com a perspicácia que lhe é própria. Assim como o homem haverá de lê-la como homem, mas nem por isso sua visão precisará ser machista. São lugares diferentes de leitura, mas não são leituras opostas.

Na semana que vem, trataremos de uma outra abordagem bíblica: aquela que prioriza o texto. Até lá!

MARCADOR: SOLANGE MARIA DO CARMO 
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