sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A Bíblia: métodos de leitura 3



Já vimos dois tipos de abordagem bíblica: aquele que põe acento sobre o autor e outro que prioriza o leitor. Hoje falaremos sobre uma outra abordagem, a que centraliza sua atenção sobre o texto.

3º) Métodos que priorizam o texto
Depois de investigar o autor e dar voz ao leitor, entramos em outra fase: a valorização do texto, do que está escrito. Recupera-se o valor do texto, do registro que nos foi legado. Percebe-se que o texto diz por si mesmo; basta saber ler o que está dito, basta deixar o texto dizer, pois os relatos na sua forma escrita comunicam algo: uma leitura literária da Bíblia.

Mas será a bíblia uma literatura? Bom no sentido estrito de literatura como “arte da palavra”, que alguns pesquisadores usam, a bíblia talvez não encaixe na classificação de obra literária. Mas hoje encontramos uma definição muito mais ampla de literatura e que parece muito mais apropriada. Literatura é criação desinteressada que está destinada a durar. O que é uma criação desinteressada? É aquela obra que é de natureza estética, ou seja, um dos seus principais objetivos é proporcionar prazer ao leitor: o prazer de ler, a satisfação dos sentidos, a difusão de idéias, a transmissão de experiências, a alegria de ver a vida de sua gente recontada nos relatos, etc.

Se a bíblia é entendida como uma literatura – como um registro do seu tempo, cujo objetivo do autor é transmitir a experiência de fé de sua gente e proporcionar nos leitores a alegria de fazer essa mesma experiência –, então ela está sujeita aos mesmos métodos de análise literária que qualquer outra da literatura. Mas uma abordagem bíblica por essa vertente pode causar estranhezas em alguns, que apresentam suas objeções:

a)        “Se é assim, então a bíblianão foi inspirada”: Parece que por ser Palavra de Deus encarnada em palavra humana, a bíblia torna-se menos digna de credibilidade, menos capaz de iluminar nossa realidade. Mas, por ser palavra humana, a bíblia não é menos Palavra de Deus, não é menos inspirada. Ao contrário, aí é que está o chique: Na Escritura, Deus se torna evento nas palavras humanas, abandonando sua radical alteridade para se deixar conhecer. Ao tratar o texto como evento literário, ganhamos clareza e amplitude e, se perdemos precisão, ganhamos muito mais em significado. O que seria dito com muita precisão e positividade num relato histórico-jornalístico ou numa biografia não é mais digno de fé e credibilidade do que o que é dito em forma poética, mitológica, narrativa com toda a estranheza do texto. Há tanta verdade na ficção quanto num relato histórico, depende de como entendemos a verdade. Vejamos um exemplo. O que nos diz mais sobre a vida sofrida e peleja do povo nordestino: a obra literária de Graciliano Ramos, como Morte e Vida Severina ou Angústia, ou uma pesquisa do senso IBGE ou um relato de um historiador? O que nos fala mais sobre os costumes mineiros e as tramas do sertão de Minas: a obra de Guimarães Rosa Grande Sertão, Veredas ou os registros oficiais das prefeituras das cidades do noroeste mineiro? Depende muito. Se os relatos desses autores é pura ficção no que diz respeito aos personagens, elas ao mesmo tempo transmitem a mais pura verdade sobre o homem por eles descrito. E ainda, elas tomam nomes fictícios, mas a realidade que elas transmitem não é fictícia: é real e verdadeira. O fato de uma obra ser literária não lhe tira sua verdade, ao contrário, confere à verdade que ela transmite ainda mais amplitude e significado.

b)         “Ah, isso é um truque para a Igreja se safar das contradições presentes na bíblia e dos absurdos por ela relatados”. De um lado é verdade. Quando se toma o texto como literatura e não como ditado de Deus, a resposta para toda questão pode ser o gênero literário, a forma de escrever do autor, o recurso por ele utilizado, etc. E vamos admitir: há muitas contradições na bíblia. Contradições de cunho histórico e geográfico, do tipo cultural; contradições religiosas e até teológicas. Mas a Igreja não precisa encaixar o texto na análise literária para sair dessa saia justa. A noção de inspiração que a Igreja assume já é suficiente para dar ao leitor condições de conviver com essas estranhezas do texto. Estranhezas que são desde informações equivocadas, quanto noções culturais só assimiladas por aquela cultura. Basta ao leitor saber que Deus não ditou o texto e que ela é uma obra do seu tempo, de uma cultura específica, com conhecimentos científicos e noções religiosas bem diferentes dos conhecimentos do leitor atual. A análise literária não é para justificar os textos bíblicos. Ela não tem fins apologéticos. Sua finalidade gira em torno de outro eixo: a possibilidade de plenificação do texto, de forma que o leitor possa tirar do relato tudo o que ele pode lhe dizer.

Se a bíblia, então, é uma literatura, as palavras registradas no texto, os artifícios literários que ele contém, as escolhas do autor, nada disso é ingênuo e sem conseqüências. Cada texto, cada relato e sua mensagem teológica estão subordinados a questões literárias que o texto suscita. Torna-se fundamental, pois, deixar-se impregnar de sua natureza literária, dos traços características que cada relato literário possui. Como já falamos anteriormente, a Escritura não é ditado de Deus, nem relato histórico de eventos acontecidos no passado; é resultado de uma criação por parte do autor, cujo interesse é difundir experiências religiosas vividas por seu povo e suscitar nos leitores o prazer de fazer essa experiência. E que fique bem claro: o conteúdo que é dito – a teologia que perpassa o texto – não está separado da forma como o texto se apresenta. A teologia que o autor elabora está dita na forma literária que ele a transmite, no modo como o relato é organizado, nas escolhas que o escritor faz ao registrar o texto. Conteúdo teológico e forma literária estão em íntima relação. Assim, poderíamos dizer que, na trama da escrita, as mesmas palavras humanas que escondem Deus também revelam sua face amorosa. O mesmo recurso literário que ofusca o que é dito é o recurso que revela o sentido do texto. A mesma questão literária que tira a precisão do relato plenifica-o, fazendo-o ganhar significado.

Esse tipo de leitura enfrenta alguns obstáculos. Nenhum método é tão bom que nos faça escapar da aventura do equívoco. Vejamos alguns riscos:

a)           A tendência de fazer desaparecer o autor e seu contexto. Ao colocar sua tônica sobre o texto, o método literário corre o risco de menosprezar o autor do texto. Pode-se de tal forma absolutizar o texto, que todas as outras possibilidades de leitura sejam descartadas. Mas, se essa tendência é um perigo, ela é também uma vantagem. O descolamento do autor possibilita a chance de o texto falar. Enquanto estamos preocupados com a intenção do autor, sempre oculta, esquecemo-nos do legado que ele nos deixou, presente em cada sinal de seu relato. A intenção do autor é sempre uma hipótese, enquanto que o texto é algo concreto, palpável, possível de análise. Ao mergulhar no texto, o leitor encontra muito mais que palavras e artifícios literários. Ele encontra o próprio autor, sua realidade, sua comunidade, sua vida, sua fé, seus costumes, sua história.

b)           O risco de desconsiderar o leitor. Esse é um risco que não podemos desprezar: o de achar que o texto é absoluto e que tudo advém dele, de forma que sua análise traga um resultado isento de parcialidades, algo puro e inquestionável. Nós já sabemos que não é bem assim. É só lembrar que, para que o sentido se descole do texto, o texto precisa de um leitor. E todo leitor se aproxima do texto com uma predisposição, com um horizonte de compreensão já formulado, com uma realidade que o envolve, que o obscurece ou o fascina. Não se vai ao texto com uma cabeça oca, mas com uma vida de experiências, conhecimentos e afetos que faz o leitor ser quem é, que o faz formular questões e hipóteses que lhe são próprias. Logo, uma boa leitura do texto nunca desconsidera o leitor, o único capaz de fazer saltar do registro literário o seu sentido.

c)           A confusão entre fundamentalismo e leitura literária. Nem seria preciso tratar disso, mas para evitar transtornos, vamos enfrentar o assunto. Ao se falar em leitura literária, muita gente acaba pensando em fundamentalismo: ler o texto ao pé-da-letra. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Esse equívoco vem do fato de a leitura literária valorizar o texto e tomá-lo como ponto de partida do estudo. Mas vamos esclarecer: A leitura fundamentalista parte da convicção de que cada palavra da bíblia é Palavra de Deus, inspirada por ele, praticamente um ditado de Deus ao hagiógrafo, palavra por palavra. Bem diferente da leitura literária, que parte do pressuposto de que a bíblia não é um ditado, apesar de sua inspiração divina. O perigo do fundamentalismo está exatamente em desconsiderar o texto como literatura humana, como se ele tivesse caído pronto do céu, sem a mediação humana. Parece que esse risco é bem remoto na leitura literária.

Mas, se há riscos, essa abordagem tem múltiplas vantagens. Ao tomar o texto como eixo da leitura, podemos realizar uma busca de sentido muito ampla, sentido que só pode ser encontrado nele. E isso é muito importante no campo teológico: o sentido. Porque Deus é o Totalmente outro que não pode ser dito e a única linguagem possível para falar dele é a linguagem simbólica, sempre plena de sentido.
Para concluir, poderíamos afirmar que, nesse mergulho no mundo do texto, encontramos, ao mesmo tempo, o texto – que é o legado do autor; o autor – que se diz no texto; e ainda nos encontramos como leitores no confronto com o que está dito.

Solange Maria do Carmo

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