sexta-feira, 29 de outubro de 2010

A bíblia: métodos de leitura 4



A todos os estudiosos que se dedicaram e se dedicam aos estudos da bíblia, descobrindo novos métodos de leitura e ampliando os já conhecidos, rendo o meu tributo de gratidão e admiração e bebo certamente da fonte que eles disponibilizam para também ler e interpretar a bíblia.
Mas hoje gostaria de tomar a contra-mão do que foi abordado até agora. Em vez de me deter nos métodos hermenêuticos como luzes para os caminhos da bíblia, gostaria de pensar a bíblia como luz para nossos caminhos, conforme diz o Sl 119,105. Não é uma questão apenas de trocadilho. É uma escolha, uma opção pensada e deliberada de tomar as Sagradas Escrituras em toda sua estranheza e dificuldade como luz, como clarão, como farol que ilumina nossa vida. Certamente essa escolha se aproxima mais do terceiro momento acima citado que se apropria do texto como literatura, fazendo a recuperação da centralidade do texto na hora de escutá-lo, estudá-lo e acolhê-lo em nossa vida. Mas penso que tomar a bíblia como luz para nossos caminhos vai além dessa abordagem, apesar de integrá-la no processo, pois na leitura literária das Escrituras corremos também o risco de ficarmos aprisionados no texto.
Ao se falar em métodos de leitura da bíblia, precisamos ver a centralidade da bíblia na vida dos cristãos. É preciso lembrar que a religião cristã, assim como o Islamismo e o Judaísmo, é intitulada por muitos de “religião do livro”. A experiência de fé de um povo se encontra registrada em textos que foram canonizados pela Igreja e aceitos como livros inspirados por Deus. Mas se a religião cristã é religião do livro, ela é antes de tudo religião da hermenêutica. Cada texto da bíblia nasceu da hermenêutica de uma experiência religiosa que, depois de ser vivida e partilhada, se tornou escritura. Essa escritura foi conservada e projetou luzes sobre outras realidades. Sua acolhida provocou outra experiência religiosa, que de novo foi transmitida para novas gerações, tornou-se outro registro, que foi outra vez lido e reinterpretado, numa corrente hermenêutica que perpassou gerações e gerações.
Nesse processo de apropriação do texto, ele foi ganhando novo sentido e elevando o texto anterior a um patamar hermenêutico ainda mais alto. A narratividade bíblica ganha corpo na vida de cada grupo, de cada pessoa que acolhe, experimenta, degusta o texto. A Escritura Sagrada projeta luz sobre a experiência religiosa das gerações que a acolhem. Percebe-se que o Deus que falou aos antigos pais na experiência de fé por eles vivida continua falando a cada um que se abre para a experiência com ele: a palavra escrita é luz para o leitor e provocadora de novas e legítimas experiências de fé que vão ser luz para novas experiências. Assim, o povo hebreu não teve receios de refazer o texto, pois acreditou que Deus continuava falando; sua luz continuava sendo projetada sobre a sua caminhada de fé. Os profetas se apropriaram de textos que os antecederam e os interpretaram atualizando as Escrituras. Os evangelistas tomaram os textos dos profetas e os viram ganhar plenitude em Jesus. E assim por diante.
Desde seus primórdios, a Igreja entendeu essa hermenêutica da experiência de fé vivida como Sagradas Escrituras ou Palavra de Deus, expressão nem sempre bem compreendida, pois deu margem para pensar que o texto, por ser sagrado – Palavra de Deus –, estava engessado, como um ditado de Deus feito a pessoas com capacidade especial de comunicação com ele. Essa visão das Escrituras levou-nos a esquecer que esses relatos continuam sendo textos, elaborações teológicas literárias, exigindo sempre novas hermenêuticas. E cada texto tem seu mistério, que não está ali para ser desvendado apenas, mas acolhido, experimentado, saboreado. Na acolhida do texto, o relato faz sentido na vida de quem o acolhe, projetando luz sobre a vida do ouvinte.
Se o princípio hermenêutico é válido para todo texto, ainda mais para as Escrituras Sagradas, que relatam a experiência de fé de um povo com o Deus Totalmente Outro, o Deus que não tem nome, que não pode ser visto, muito menos apreendido, abarcado, esgotado. Esse Deus Totalmente Outro, num paradoxo sem igual, ao mesmo tempo, se esconde e se deixa conhecer. Ele se oculta e se revela, num jogo sedutor impressionante que os escritores dos textos sagrados com maestria souberam narrar. Acontece uma espécie de dança harmoniosa entre Deus e os homens por meio de artifícios literários, cuja música é tão suave que só os ouvidos sensíveis podem captar e gozar. Num vai-e-vem sutil, Deus se faz experimentar; e uma troca de intimidades acontece. Na estranheza desse jogo de mostrar-se e esconder-se, luzes são projetadas sobre a vida de quem acolhe essa Palavra.
Há, pois, uma beleza e uma significação incomparáveis nessa estranheza. Ela instiga, questiona, faz pensar, provoca mudanças, causa mal-estar – algo bem próprio da vida de fé. A estranheza do texto desinstala o ouvinte, incomoda-o; ela o faz ir além do dito para acolher o não-dito, porque Deus se diz nas palavras e para além delas. A experiência de fé é o inefável que precisa ser narrado. A estranheza do texto é a porta de entrada da escuta, porque ela provoca, suscita desejo, atenção; ela instiga a escutar. Há, pois, uma tensão salutar: o que não dá para dizer, o inenarrável, precisa ser dito mesmo assim. Então acontece algo maravilhoso: o Deus que não pode ser dito, ele mesmo se diz. E isso é mesmo muito estranho.
Aí encontramos a característica mais curiosa da investigação bíblica. Se Deus é o objeto da investigação, ao mesmo tempo ele é o sujeito da ação investigativa, porque é ele que se dá a conhecer, é ele quem fala, é ele quem se diz, o que não elimina, é claro, o esforço da investigação, mas cria uma atitude humilde de acolhida. A tarefa da investigação bíblica não é tanto dar uma informação, proporcionar conhecimento, achar uma solução para o texto, eliminar sua estranheza. Seu desafio é antes ajudar no reconhecimento de Deus que fala por meio de sua Palavra, é suscitar no ouvinte abertura e acolhida como correspondência a Deus que é pura doação e se entrega a cada um que se dispõe a ouvi-lo. Deus fala. E falar é abrir um campo de comunicação onde nada é determinado de antemão, onde os dois interlocutores que travam o diálogo estão abertos ao novo, ao inusitado. Por muito tempo, nós fomos à bíblia buscar textos que justifiquem nossas teologias, nossas definições dogmáticas, nossas certezas morais, nossos costumes. Já é tempo de dar palavra à Palavra, deixar a Palavra dizer. E a Palavra quer se dizer. É só estarmos dispostos a escutá-la.
Por isso, meus amigos, aproveito essa reflexão para motivar vocês a acolherem a luz que essa Palavra lança sobre nossas vidas, para que vocês vivam à luz da Palavra de Deus. Mais que conhecer métodos exegéticos e hermenêuticos muito complicados que lançam luzes sobre o texto sagrado, apesar da máxima importância disso, talvez seja mais importante ainda se dispor a acolher a luz que é própria dessa Palavra e que pode transformar nossas vidas.
Na próxima semana, daremos algumas dicas para a leitura dos textos, tentando evitar os erros mais comuns na abordagem bíblica. Até lá!


Solange Maria do Carmo

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