(1ª parte)
Durante muitos anos a Igreja tem investido na formação dos vocacionados ao ministério presbiteral, proporcionando-lhes a oportunidade de fazerem dois cursos de graduação: a filosofia e a teologia. Essas iniciativas começaram timidamente com cursos para seminaristas, sem grandes pretensões, e ganharam vulto, fermentando a sede do saber e desembocando em universidades católicas ou pontifícias. É o caso da maioria das universidades católicas de nosso país. Com o tempo, muitos desses cursos seminarísticos alcançaram o reconhecimento do MEC, e tanto a filosofia quanto a teologia têm hoje lugar de destaque no cenário de algumas universidades.
Já se foi então o tempo em que fazer filosofia e teologia era estudar numa faculdade de “fundo de quintal”, sem reconhecimentos da sociedade civil e sem espaço no mundo do pensar em geral, como se a filosofia e a teologia estivessem exiladas da vida secular. A primeira a sair do gueto e conquistar seus direitos foi a filosofia. Essa ganhou voz e vez mais rápido que a teologia. Já está há muito tempo nas Universidades Federais. Demorou um pouco, mas a teologia também já despontou nesse horizonte do saber. Em muitas universidades, a teologia deixou de ser aquele cursinho de seminaristas, sem maior expressão acadêmica, e tornou-se um curso como qualquer outro, reconhecido pelo MEC, dando direito a diploma e tudo, legitimando o exercício do pensar teológico na sociedade. É hora, pois, de pensar o papel da teologia na universidade.
Falar sobre o papel da teologia na universidade era coisa impensável antes. Para todos, mas especialmente para uma mulher leiga. Primeiro porque a teologia não estava na universidade, não era sujeita a críticas e desafios como os demais cursos; seu mundo era um mundo à parte. Ela, como portadora do pensamento da Igreja, podia criticar a humanidade e o mundo, mas não estava sujeita à mesma condição. Apesar da secularização crescente que adveio com a modernidade, a Igreja conseguiu salvaguardar seus direitos e se preservar de muitos ataques, mantendo seu pensar no campo privado. Em segundo lugar, porque a teologia não estava ao alcance da mulher, especialmente das leigas. Teologia era coisa para os varões, celibatários, pessoas que assumiram o ministério presbiteral. Tendo o curso de teologia deixado de ser seminarístico, as portas se abriram para as mulheres, para os leigos, para os pobres, para os não-católicos e até para os não-crentes. Seria estranho se tal mudança não nos colocasse algumas perguntas sobre os desafios e as chances que essa reviravolta nos proporciona.
Voltar para os campi das universidades católicas ou pontifícias não significa simplesmente voltar para o lugar onde a maioria delas nasceu e onde tudo começou. Não se volta para um lugar geográfico, retomando uma história perdida no passado, como se nada tivesse acontecido no mundo e na universidade durante o período do exílio da teologia. Enquanto a teologia se fazia exilada da caminhada do pensar, o curso da história mudou. E a história não se apresenta tão óbvia ou linear como pode parecer à primeira vista.
Eu peço licença a todos para fazer uso de metáforas, apesar de a universidade ser local do debate e da argumentação lógica. As metáforas podem perder em rigor científico, mas tal é o ganho do sentido que se alcança com elas, que a perda se justifica. Já dizia Paul Ricouer que o símbolo dá o que pensar. Nada melhor então que a mediação da linguagem simbólica, especialmente no campo do saber teológico, que, apesar de ser uma ciência, tem epistemologia e linguagem próprias.
Para falar sobre a teologia na universidade, primeiramente devemos pensar a presença do cristão no meio do mundo. E essa presença pode ser dita a partir de três concepções da vida do povo de Israel, ao longo de sua história. São imagens significativas, apresentadas por um catequeta francês, mas infelizmente pouco trabalhadas por ele: o exílio, o êxodo e a diáspora.
Parte dos católicos hoje vive como se estivesse em exílio. Percebe-se sempre ameaçada e “adquire reflexos de sobrevivência e de perenização em uma sociedade indiferente e mesmo hostil”[1]. Sendo atacados de todos os lados, especialmente pela mídia, cristãos recuam para o interior de si mesmos ou para a periferia da vida, como se fosse possível formar uma comunidade cristã sem entrar no curso da história e nos atropelos que ela inevitavelmente apresenta. Correm dos desafios, agrupando-se para se proteger. Querem preservar sua identidade ameaçada pela cultura dominante e sedutora, como o povo exilado na Babilônia. E, voltando-se para sua tradição e sua experiência de fé, conservam e resgatam valores que lhe são preciosos, nem que seja ao preço do isolamento do resto do mundo. Pensa-se que todos os esforços desde o Concílio Vaticano II foram ineficazes e a única forma de sobreviver é recolher-se dentro de si e permanecer fiel.
Outra parte dos católicos vive em atitude de êxodo. Percebendo o perigo faraônico que o ameaça, o grupo dos cristãos ataca para se defender. Não se recolhe, nem toma distância, como no exílio. Enfrenta o perigo: entende que o Deus da vida está a seu favor e sua libertação está próxima. Pensa que “os tempos são duros, mas o mundo criado pelo Pai espera sua reconciliação definitiva”[2]. É preciso armar-se contra o mundo, contra sua política; derrubar suas torres gêmeas, minar suas forças, explodir os alicerces desse mundo sem piedade.
Outro grupo de cristãos tem a sensação de viver em diáspora. Tendo sido espalhados por países diversos, pessoas de fé se agrupam para celebrar, para restabelecer laços de fraternidade, mas sem fugir do mundo que se lhes apresenta. Sabe-se minoria naquele universo cultural e, no entanto, vive no meio dele sem medo e sem reservas. Está consciente de não pertencer a esse mundo. Sabe que sua história é outra, mas respeita a história da gente que o cerca. Seus valores são distintos, mas descobre na gente com quem convive valores que ainda não tinha em sua tradição. Acolhe e assimila contribuições do mundo no qual imerge. Dialoga com as culturas e contribui para seu aperfeiçoamento. Torna-se sinal de Deus para a gente estranha com quem convive.
Basta um rápido olhar para a história da Igreja para perceber que, em cada tempo, a Igreja assume uma postura diferente, de acordo com o ambiente no qual se insere. A Igreja não tem uma história separada do mundo, um curso particular e próprio, como se a Igreja pudesse viver sem ser mergulhada no mar da história humana. Em alguns tempos, ela recuou, recolheu-se, exilou-se. Teve medo do inimigo: preservou-se para preservar os que são seus e garantir a continuidade da fé de seus pais. O inimigo era muito maior do que ela. Sua gente não estava suficientemente organizada para enfrentar o perigo. Era preciso esperar a história dar suas voltas, saber suportar a dor. A Igreja entendeu o ditado que diz: “nada como um dia depois do outro”. E que o libertador viria no momento mais inesperado, como Ciro que veio derrubando as potências babilônicas. Quanto ao exílio, nada contra o desejo de manter viva a identidade ou de recolher-se provisoriamente até que o tempo favoreça a exposição novamente. Foi isso que o povo de Israel fez na Babilônia e esta sábia atitude garantiu a sobrevivência de sua tradição, motivou o nascimento de farta literatura escriturística e deu-lhe forças para enfrentar a peleja da saudade.
Em outros tempos, a Igreja enfrentou, atacou, resistiu: detonou seus inimigos, nem que seja a preço do martírio de muitos dos seus, e libertou-se do jugo do opressor. Recuar seria covardia: sua gente era numerosa e forte. Esperar seria loucura: as artimanhas do opressor se multiplicariam! Era preciso agir com coragem, sabendo que o Deus da vida luta em seu favor. E mares se abriram para o povo de fé conquistar a terra que Deus lhes prometeu dar. Quanto ao êxodo, nada mais legítimo que atacar para se defender, armando-se com unhas e dentes para fazer ruir o sistema opressor. Essa coragem do povo hebreu, motivada pela certeza de que Deus via sua escravidão e se compadecia dele, deu origem ao evento fundante de sua fé: a passagem pelo Mar Vermelho.
Em outros raros tempos, a Igreja fez a experiência de se perder no meio do mundo como o fermento no meio da massa. Para levedar a massa toda, foi preciso se diluir, se misturar, se perder até. É o mundo da diáspora. Os cristãos não se isolam dos outros grupos sociais; não formam grupos separados, apesar de se agregarem em assembléias para celebrar; não atacam o mundo, mas colaboram com ele; não se pervertem pelas seduções do mal, mas testemunham a presença do Ressuscitado em suas vidas; não se portam como os detentores da verdade, mas sabem que a verdade está para além de suas fronteiras. E por isso contribuem com o mundo, vivem suas alegrias e angústias, acolhem experiências distintas e inovadoras e põem sua própria experiência em xeque diante das novidades do mundo e dos sinais dos tempos que ele apresenta.
Para que a gente possa continuar nossa conversa sobre a presença da teologia nas universidades, antes proponho que cada um pense sua atitude como cristão diante do mundo a partir dessas três metáforas. Na semana que vem, falaremos mais sobre isso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá. Seja bem vindo (a)!!! Deixe seu comentário. Será bem legal.
Obrigada. Volte sempre!!!!!