A perda que é puro lucro:
exigências do seguimento de Jesus em Mc 8,34-38 presentes no testemunho de Paulo
(3ª parte)
É visível em Marcos que há exigências para ir atrás de Jesus. Façamos agora uma leitura atenta de alguns textos das Cartas Paulinas e vejamos que eles apontam para a mesma radicalidade marcana, tendo o próprio apóstolo Paulo como paradigma daquele que renunciou a tudo, tomou sua cruz e se pôs a seguir Jesus.
Não são poucas também as passagens em que o apóstolo adverte as comunidades a deixar tudo por causa de Cristo. Paulo estava bem consciente de que quem de fato fez a experiência do Crucificado-Ressuscitado relativiza todas as coisas diante do conhecimento de Cristo, o bem supremo. Essa experiência paulina apresenta-se com tal força que o Apóstolo das nações abre mão de várias conquistas importantes para abraçar um bem maior. Para ele, suas perdas em nome de Jesus são puro lucro.
Vejamos Fl 3,4-16 e 1Cor 11,21-33. Ao fazer seu encontro com o Ressuscitado, Paulo entendeu bem as três exigências do discipulado, presentes em Mc 8,34b: renunciar a si mesmo, tomar a cruz e seguir atrás do Crucificado.
Renunciar a si mesmo: Em confronto com os judaizantes que se ufanam de seus privilégios de povo eleito, Paulo adverte que também ele teria de que se orgulhar e não seria sem motivo se colocasse sua confiança na carne (cf. Fl 3,3-4). Ele foi circuncidado ao oitavo dia, era da raça de Israel, da tribo de Benjamim, um verdadeiro hebreu, filho de hebreu, observador da Lei de tal forma que seu zelo o tornou perseguidor da Igreja; uma pessoa irrepreensível diante da Lei (cf. Fl 3,5-7; 1Cor 11,22). Mas tudo que antes era lucro apresenta-se agora como perda por causa de Cristo. Paulo compreende que aquele que se apresenta diante de Deus com o coração cheio demais sai vazio da sua presença. Não há mais espaço para a ação de Deus. Para deixar Deus agir, Paulo sabe que tem que passar por uma verdadeira kenose, a mesma kenose experimentada pelo Verbo de Deus ao se fazer homem. Tendo abandonando os privilégios divinos, o Filho se faz homem e tem que ser filializado de novo, num processo contínuo de aprendizagem da fidelidade por meio da obediência. Esse processo de filialização só se dá no esvaziamento total de si mesmo, na renúncia absoluta de todo privilégio, na experiência da perda de si. Paulo, que tão bem descreve a kenose divina em Fl 2,6-11, assume como tarefa sua própria kenose. Diante do bem supremo experimentado, que é o conhecimento do Cristo Jesus (cf. Fl 3,7-8), tudo virou esterco, lixo: nada mais tem significado a não ser seguir e servir Jesus no despojamento total de si mesmo: a kenose paulina. E o apóstolo dos gentios não narra com pesar suas perdas. Ao contrário, sabe que este é o único caminho possível do seguimento: “Por causa dele, perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado unido a ele” (Fl 3,8-9). Paulo comunga com Marcos da mesma teologia: perder por causa de Cristo é tudo ganhar. Na entrega radical da vida ao Crucificado, encontra-se a identidade mais profunda do seguidor, a singularidade, a interioridade antes perdida nas garantias da carne. A garantia da justificação em Cristo suplanta a pretensa justificação advinda da observância da Lei (cf. Fl 3,9). A comunhão com Cristo, o ser encontrado unido a ele, não tem preço. Vale qualquer preço, qualquer renúncia.
Tomar a cruz: renunciar a si mesmo só tem sentido se em prol de abraçar algo maior e melhor do que aquilo que foi deixado pra trás. Não há para o seguidor do Crucificado outra força maior que a força da cruz que o próprio Jesus abraçou livremente em favor dos seus, como sinal de amor e fidelidade. Paulo, ciente disso, abraça sua cruz e faz comunhão com os sofrimentos do Mestre e com sua morte, rumo à ressurreição que também ele espera (cf. Fl 3,10-12). E são muitos os sofrimentos. A cruz de Paulo se revela no seu ministério: fadigas, prisões, açoites, perigo de morte, chicotadas, apedrejamento, naufrágio, numerosas viagens, perigos por toda parte – nos rios, na cidade, no deserto, no mar –; da parte de ladrões, dos irmãos de estirpe, dos gentios, dos falsos irmãos. E mais: vigílias, duros trabalhos, fome, sede, jejum, frio, nudez. E a preocupação cotidiana com todas as Igrejas (cf. 1Cor 11,23-29). De nenhuma cruz imposta pelo apostolado, o Apóstolo se esquivou. Tomou-as sobre os ombros e levou-as até o fim do caminho, atrás do mestre Jesus. Compreendeu que seus sofrimentos são participação nos sofrimentos e na morte de Cristo.
Seguir Jesus: A terceira condição colocada por Marcos diz respeito ao contínuo seguimento. Seguir Jesus não é apenas colocar-se atrás dele ocasionalmente; é continuar sempre correndo no desejo de alcançá-lo (cf. Fl 3,12), lançando-se em direção à meta, para conquistar o prêmio que Deus nos chama a receber, o próprio Cristo Jesus (cf. Fl 3,13-14). Paulo está consciente dessa exigência cristã e dela não se esquiva.
Retomando Marcos, percebemos que o renunciar a si mesmo, o tomar a cruz e o seguir Jesus são em prol do discípulo. Podemos afirmar que com certeza Paulo compreendeu isso. Nenhuma perda é de fato perda para ele: é lucro. Nenhuma renúncia seria maior do que a de não ser discípulo autêntico e ter sua singularidade cristã comprometida por causa de seus apegos. Nenhuma cruz pesa mais que a de não poder seguir o mestre em amor e fidelidade. Paulo e Marcos comungam da mesma fonte: entendem os imperativos do discipulado como consequências naturais da opção abraçada. Paulo, em sua vida entregue ao apostolado, é ícone das exigências radicais de Mc 8,34-38.
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