Profª Solange Maria do Carmo
Durante muito
tempo, o texto-base da catequese foi o catecismo. Com a chegada da Catequese
Renovada, os catecismos – tão prontos e taxativos! – cederam espaço para
manuais catequéticos que tinham a cara das comunidades locais. Os problemas da
vida, as esperanças e tristezas do povo, começaram a se fazer presentes nestes
roteiros. Foi aí que a Bíblia achou entrada na catequese. Ela iluminava a vida
concreta dos catequizandos e a vida dos catequizandos dava mais sentido ao
relato bíblico. A conexão da Escritura Sagrada com a vida, a unidade da
história da salvação com a história da gente, foi aos poucos sendo descoberta.
Isso foi um ganho sem conta para a catequese. Mas, mesmo com esse avanço, a Bíblia
ainda não ganhou a centralidade que ela merece nos nossos encontros
catequéticos.
Na história de
nossa catequese, a Bíblia foi instrumentalizada para justificar nossas crenças
e posturas. Ela serviu de apoio para legitimar nossos dogmas, para afirmar
nossa moral, para garantir nossas ideologias. O processo que se afirmou na
catequese pode ser descrito mais ou menos assim: a gente tem um problema (ver),
então vamos à biblia para que ela ilumine essa situação concreta (julgar);
julgada a situação à luz da bíblia, vamos tomar uma postura (agir). É o método
ver-julgar-agir, tão conhecido na América Latina. Esse método rendeu frutos
abundantes, mas ele ainda não deu palavra
à Palavra de Deus.
Mas como assim
dar palavra à Palavra de Deus? Bom,
nós dizemos, e com razão, que a Bíblia é Palavra de Deus. Ora isso não quer
dizer que Deus ditou a Bíblia. Quer apenas dizer que, nos relatos de fé que a
comunidade registrou, Deus se diz, ele se dá a conhecer, ele mostra o seu
rosto. Ora, quando lemos com fé esses relatos, Deus fala a nós, ele continua
entrando em relação conosco como fez com aquela gente e continua nos
proporcionando por meio do texto uma experiência de fé, tão profunda e forte
quanto aquela que motivou o surgimento do relato. Então, na catequese, precisamos
resgatar essa dinâmica da relação com Deus que a Escritura Sagrada proporciona.
A Bíblia não é um livro cheio de regras e dogmas ao qual a gente recorre para legitimar
nossas crenças. Por exemplo: o representante máximo da Igreja Católica é o
papa, então, na controvérsia com os protestantes, procuro na bíblia frases e
textos que me digam que Jesus instituiu Pedro como primeiro papa da Igreja. A
bíblia não é também um livro cheio de fatos e histórias que legitimam nossas
ideologias. Por exemplo: eu vejo que os ricos oprimem os pobres e afirmo que
isso não é vontade de Deus, então procuro na bíblia relatos de condenações aos
ricos e de apoio aos pobres. Ora, não é preciso usar a bíblia para ambos os
casos. No primeiro caso, a Igreja tem o direito de ter seu representante, de
ter sua organização, ainda que Jesus não tenha pensado em instituir um papa, em
ter uma Igreja com esta estrutura hierárquica que temos. Essa estrutura é
legítima se ela é para servir, para unificar, para apoiar todos os que professam
sua fé, mesmo que não tenha na Bíblia. E é ilegítima se ela serve como
exercício de poder, mesmo que lá ela esteja presente. O que legitima algo não é
o fato de estar na bíblia ou não, mas o fato de promover a vida de todos. No
segundo caso, ainda que a bíblia nada dissesse sobre a exploração dos ricos
sobre os pobres, eu estou certa de que posso condenar essa prática. Ela é
ilegítima, pois não promove a vida plena, nem do pobre e nem do rico. A vida
plena se encontra na fraternidade e na partilha. Se a gente for procurar na
bíblia textos para legitimar nossas crenças, poderemos legitimar as práticas
mais absurdas e inimagináveis: o assassinato, o machismo, a escravidão, a
guerra etc. A bíblia não é para isso. Ela é um livro surpreendente. Nela tem
relatos de uma fé viva e atuante. E, por meio desses relatos, o Deus que entrou
em relação com aquele povo continua falando e entrando em relação conosco.
Então, é preciso tomar cuidado pra gente não ir à Bíblia buscar o que nós
queremos legitimar. É preciso acolher o Deus que fala por meio dela. É preciso
dar à Palavra de Deus a chance de dizer o que ela quer dizer.
Essa tentativa
de dar palavra à Palavra de Deus muda
o modo de abordar a bíblia em nossos encontros. Ela não é a luz que é jogada
sobre a situação concreta da vida; ela é a motivação da conversa, o ponto de
partida dos encontros. O Deus amoroso e carinhoso, que se manifestou ao seu
povo lá naquele tempo, é o mesmo Deus que hoje se manifesta a nós e nos
dispensa seu carinho, nos ajudando a ter força para viver, nos motivando a
viver uma vida que não seja fútil, que seja plena de sentido. A bíblia não deve
ser entendida como um conjunto de dogmas ou de moral cristã. Ela é Deus se
dizendo a nós; sua escuta é ocasião para fazer acontecer na nossa vida a mesma
experiência transformadora que o povo da bíblia fez. Então, a catequese não é
um curso bíblico, nem uma reunião de círculo bíblico, ambos bons e importantes.
A catequese é encontro com Deus por meio do mergulho na fé que a Escritura
Sagrada registra. Nossos catequizandos podem até não saber quantos livros a
bíblia católica tem, em que língua foi escrita, quando, onde. Podem também não
saber as passagens bíblicas que defendem a ferro e fogo a fé católica. Podem
não saber verbalizar o discurso opressor-oprimido que muitos vêem na bíblia.
Mas certamente eles saberão que o Deus vivo e atuante que agiu na vida daquela
gente continua caminhando conosco e dando sentido à nossa vida. Por meio dos
encontros, os relatos bíblicos serão destrinchados, desmitificados,
interpretados. Será preciso quebrar barreiras, des-aprender muita coisa,
desconstruir para reconstruir de novo sob bases mais sólidas, mais lúcidas.
Tudo para proporcionar a experiência cristã de Deus. Tudo para que os
catequizandos experimentem o amor incondicional de Deus manifestado em seu Filho Jesus
Cristo.
Mais artigos da profa. Solange no:
www.fiquefirme.com.br.
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